quarta-feira, 19 de março de 2008

A díficil arte de saber quando parar

Sou, entre outras coisas, professor. Neste trabalho, costumo alternar aulas mais introspectivas com outras mais “enérgicas”. Em ambos os casos, é difícil identificar o momento em que o estímulo à reflexão vira egotrip vazia ou mera pieguice; ou saber quando a farra deixa de ser divertida e passa a ser repetitiva ou forçada. Os anos aprimoram o instinto, mas ainda assim, é difícil saber quando parar.

O mesmo parece acontecer em todos os demais aspectos da vida. Grandes bandas sujaram os últimos anos de uma biografia que começara boa por insistir em levar adiante um projeto que não se sustentava mais. Casais ou até amigos que não têm mais a compartilhar ou acrescentar raramente se dão conta disso sem que haja muita briga e choradeira, que tendem a anular quaisquer chances de boas recordações. Trabalhos produtivos se transformam em fonte perpétua de aborrecimento e enfado porque não quisemos largar o osso que já tinha sido inteiramente roído.

Tenho a impressão que isso tem a ver com o fato de nos apegarmos a coisas e pessoas, querendo que de alguma maneira eles pertençam a nós e permaneçam imutáveis, congelados na condição que exibiam quando passaram a nos agradar. Claro que esse é um comportamento fadado a levar à frustração e até ao desespero. As coisas não ficaram como eram. Acho engraçado quando encontro alguém que diz, orgulhosamente, ser o mesmo que sempre foi. É óbvio que conservamos uma âncora dentro de nós, que preserva certos traços que nos compõem de maneira indissolúvel, mas o passar dos anos e dos acontecimentos certamente provocam mudanças em nós. Criamos nossos pequenos portos seguros em nossos rituais – eu tenho que tomar café-da-manhã lendo gibi da Disney todos os dias – mas isso é apenas um gesto (muito humano) de segurança, de manter a “ordem” em pequenas coisas que podemos controlar.
Porém esses rituais não desviam (ou não deveriam desviar) a atenção do fato de que as coisas terminarão. Tudo chegará ao seu fim, e muitas vezes insistimos em segurar o cadáver de algo ou alguém que já se foi, confiante que a força das lembranças trarão de volta aquilo que tanto prezávamos. Não trará.

Faz pouco, estava me envolvendo em uma montagem teatral: um papel de destacado, uma produção aparentemente grande. Nada pelo qual eu tivesse interesse especial: era uma montagem de Gota D’Água, do Chico Buarque. A primeira debruçada sobre a peça me trouxe as muitas falhas do texto, que só eram evidenciadas e somadas a outras a cada leitura ou análise feita por mim ou pelos meus companheiros de elenco. A coisa simplesmente não virava. Em tese, pagaria um bom dinheiro (“em tese” porque ninguém viu a cor do cachê após uns meses de trabalho*, mas há promessas e datas ainda vigentes), e melhor, estava na companhia de pessoas que respeito e de outras que posso chamar, com alegria, de “amigos”. Mas por inúmeras razões, a coisa não estava indo adiante para mim, e decidi parar antes que pudesse me comprometer ou comprometer ao trabalho que está sendo desenvolvido.

Não foi uma decisão das mais fáceis – largar um osso que ainda aparenta ter muita carne. Mas tem horas que o cachorro precisa entender que há outros ossos por aí, e que ele não pode empatar a dos outros cães da matilha, ou assumir que aquele osso não é pra ele. Ou simplesmente ver que aquele osso, mesmo disponível, não lhe interessa.

É difícil sair no meio de algo que ainda não está completamente degringolado (e talvez nunca esteja), porém preferi correr o risco. Alguns chamariam de fuga. Eu chamo de aprendizado. Aprendizado limitado, pois a partir de hoje jamais saberei como será participar daquela peça, como seriam as coisas se eu estivesse por lá bancando o Creonte – só poderei aprender o que acontece tendo deixado a peça. Mas precisamos exercitar o timing da hora de parar, porque vai chegar a hora em que pararemos sem aviso, e então deve ser bem ruim deixar coisas incompletas ou feitas porcamente.

* escrevi isso faz uns dias. Anteontem fiquei sabendo que os trabalhos estão “em recesso” por falta de verba. Pelo visto, exerci bem o timing dessa vez. Com uma bela ajuda da Senhora Intuição. Provável que haja mais uns escritos sobre isso em breve.

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