quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O coati demoníaco

O coati de madeira que dominou o topo da minha caixa de som me parece demoníaco pela primeira vez desde que ele assumiu seu posto. Poderia dizer que é o peso dos meus crimes na consciência, mas se cometi crimes, desconheço, pois já não tenho mais consciência (uns fiapos aqui e ali, nada mais).
Provavelmente foram os ruídos que se escutam à noite – não os ruídos noturnos, as pessoas que dizem ouvir ruídos noturnos estão dolorosamente equivocadas, lexicamente equivocadas. A noite não range nem geme, a noite está aí e se ela se sobrepõe ao dia com algum estalido não somos nós que conseguimos ouvir. Os ruídos que me despertaram e assustaram são ratos, gambás e outros animais (coatis?) que vivem no forro do teto da casa que adotei como minha, mas minha não é, nem da minha namorada. Pertence a uma Fundação que mantém um Hospital que é sustentado por uma Usina Hidrelétrica. Nada é de ninguém. Tudo é do governo.
Os animais. Seus passos me despertaram do torpor divertido em que estava, lendo o Café-da-Manhã dos Campeões em uma noite quente e comum. Eu ria, um olhar demoníaco de madeira veio aos meus olhos quando os ruídos se fizeram demasiado audíveis para que pudessem ser ignorados e aí, ó dor! ó sofrimento!
Não, que dor e sofrimento que nada, eu não sei o que é dor faz tempo, me mantenho dolorosamente alheio a ele, e é por esse paradoxo que sofro, pois desconheço o sofrimento de sentir uma dor que me lembre de como é estar vivo (piloto automático acionado), e não consegui me libertar do ciclo da dor e ser feliz assim, só me anulei, me nulifiquei como só o podem aqueles dotados de grande capacidade mental. E uns outros tantos medianos, e até outros abaixo da média, mas enfim, quem mais sacrifica sua capacidade intelectual (por capacidade intelectual aqui, entenda-se: velocidade para ler livros, habilidade para redigir duas frases coerentes e facilidade para memorizar coisas nem sempre úteis e falar idiomas que não aquele que me ensinaram desde criança).
Eu estou aqui, já não mais sob o olhar auspicioso de um animal esculpido que me contemplou em dias mais intensos, tomados de erro e felicidade, hoje apenas fragmentos imbuídos de nostalgia que existem espalhados aos cacos em minha memória. Talvez seja incorreto dizer que eu era mais feliz. Eu era mais inconseqüente, sem dúvida. E mais sozinho, ainda que não necessariamente solitário. Minha companhia costuma fazer bem a mim mesmo.
E veja, que são tantos os dias, os bons e os ruins, que eles se misturam e mal nos damos contas deles, porque os dias não são, nós é que fazemos deles o que quer que sejam. Eu imagino que não haja um plano de existência paralelo a esse onde desperte um ser levemente antropomórfico pensando, “caramba, olha só, eu sou 26 de julho, sou um dia legal, acho que vou fazer bem às pessoas hoje”. No dia 26 de julho a avó de alguém vai morrer, alguém vai dar uma trepada memorável, carros vão colidir, deus vai se revelar a uns e se provar inexistente ou indiferente a outros, tudo conseqüência do que cada um fez e faz.
Mas os dias, em geral, são medianos, porque medianos são os homens que os compõem. Às vezes, mesmo os medianos têm um pico de emoção, mas este logo some e não precisa mais estar ali, porque já o soterramos sob as coisas do cotidiano. Assim é? Não, assim fazemos. É assim.
Caminhos tortuosos guiam a minha mente, mas não podem esconder que o que eu queria mesmo agora era saber que amanhã tudo estará resolvido e eu poderei seguir sendo comum. As pessoas costumam gostar de ser comuns, e a maioria que pensa apresentar diferenciação (como se roupas, vocabulário e consumo de substâncias sejam algo que possam nos diferenciar em essência), o faz para atrair a atenção dos comuns. Claro, há os que querem ser ignorados. Esses geralmente têm sucesso no que querem.
Eu acredito em Deus, nos coatis e no que algumas pessoas me dizem. Não é em tudo que essas pessoas dizem que eu deveria acreditar, e no meu filtro passam mais opiniões lisonjeiras que nocivas. Mas enfim, quem sou eu para questionar?

Um comentário:

Jongleuse disse...

Poxa, obrigada pelo carinho de me avisar da casa nova.

Já está adicionada na pastinha "blogs" aqui no PC...

Que ele te renda textos tão insipeados como os os espaço anterior.

Bjos